Arame farpado
Estou a ler o "Império", do jornalista Ryszard Kapuscinski (During his four decades of reporting on Asia, Latin America, and
Tendo em conta que, onde fosse tecnicamente possível, as fronteiras em questão sempre tinham sido (e continuavam a ser) protegidas por enormes fossos de arame farpado (vi essa parafernália nas fronteiras com a Polónia, a China e o Irão) e que o referido arame, devido ao péssimo clima, se estragava rapidamente e tinha que ser substituído com frequência em centenas, melhor, em milhares de quilómetros, podemos aceitar como dado adquirido que grande parte da metalurgia soviética mais não era que a indústria do arame farpado.
Além do mais, isto não se esgotava só com as fronteiras! Quantos milhares de quilómetros de arame não se usaram nos fossos à volta do arquipélago Gulag? Aquelas centenas de campos de concentração, etapas e cárceres espargidos por todo o território do Império! Quantos milhares de quilómetros não se gastaram ainda a cercar superfícies poligonais de artilharia, de carros blindados e de armas nucleares? E as vedações aramadas dos quartéis militares? E as de toda a espécie de armazéns?
Se multiplicarmos tudo isto pelos anos de existência do poder soviético, não será difícil responder à pergunta sobre a razão de nas lojas de Smolensk ou Omsk não se conseguir comprar uma enxada ou um martelo, para já não falar numa faca ou numa colherzita: não há matéria-prima para fabricar estes objectos; gastou-se tudo com o fabrico de arame farpado. Mas a coisa não acaba aqui! Ao fim e ao cabo, toneladas deste arame tiveram que ser transportadas - em barcos, em comboios, em camelos, em trenós puxados por cães - para os lugares mais remotos, para os recantos mais inacessíveis do Império para depois ser descarregado, desenrolado, cortado e fixado. Não é difícil imaginar as intermináveis reclamações - por telefone, telégrafo ou carta - de comandantes de postos fronteiriços, de comandantes de lagers (campos de concentração) e de directores de prisões pedindo novas remessas de toneladas de arame levados pelo seu zelo previdente de fazerem grande aprovisionamento para a eventualidade de faltar nos armazéns centrais. Por outro lado, também não é difícil imaginar aqueles milhares de equipas e comissões de controlo percorrendo o Império de ponta a ponta com o objectivo de verificar se tudo estava bem cercado, se os fossos tinham altura e espessura suficientes, se o emaranhado de arames era suficientemente denso de forma a que nem mesmo um rato conseguisse escapar através dele. Também é fácil imaginar as chamadas telefónicas de Moscovo aos seus subordinados nas províncias, chamadas que contêm o alerta e a preocupação constante encerrados na pergunta: De certeza que aí estais bem aramados? E é por isso que os homens, em vez de construírem casas e hospitais, em vez de comporem instalações de água e electricidade, que não cessam de se estragar, durante anos e anos estavam ocupados (felizmente nem todos) a aramar o seu Império, pelo interior e pelo exterior, à escala local e estatal.
2 comentários:
Até pode ser curiosa, mas não é certamente original.
Então não é que o Congresso Norte Americano, umas décadas de "civilização" adiante do relato que transcreves decreta fazer um muro de 1200Km (para já) na sua fronteira com o México. Algum progresso já se sente (agora em vez do arame a industria é a do betão).
Infelizmente todos os "impérios" são riziveis.
Quanto a campos de concentração...nem é bom falar, porque os há por aí (alguns em pedaços de ilhas colonialmente ocupadas, outros que ningém sabe exactamente onde ficam mas sabe-se que existe um imenso tráfego aéreo que os alimenta). Campos igualmente cercados por arames igualmente farpados.
Por outro lado acho de uma certa sobranceria de posição o modo como, no final do texto fala dos funcionários zelosos em torno de uma actividade infeliz imposta por um governo autoritário. Talvez seja melhor a pregunta que noutros hemisférios, outros empregados, tanbém eles zelosos, mas ao serviço de outros "senhores" fazem, quando condicionam o tratamento médico a um acidentado à porta de um hospital à apresentação do "papelinho" do seguro de saúde.
..."Tempos Modernos"... mas os hábitos dos impérios, com ligeiros acertos no enfoque....permanecem muito semelhantes.
Jorge, estou totalmente de acordo: não só Guantanamo é um horror, existente num Império que tem coisas inacreditáveis, como a defesa da pena de morte e a NRA, como também nós temos alguns tiques de Império, por termos uma população que aceita sem reclamar atentados contra a dignidade do Homem.
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